Evandro Tortora compartilha sua trajetória em uma etapa onde a grande maioria é formada por mulheres.
Somos a minoria dentre os docentes na Educação Infantil e isso é perceptível na grande maioria das instituições de Educação de crianças. A presença do homem é historicamente menor nesses espaços e, quando estão por lá, muitas vezes figuram como diretores ou coordenadores pedagógicos.
Lá na minha escola, quando o ano se inicia, é sempre a mesma história: as famílias chegam perguntando quem é a professora da criança, sempre na expectativa de encontrar uma mulher. Claro que entendemos a busca por uma docente, mas porque a presença do homem é tão menor na Educação Infantil e isso tem alguma consequência para as crianças?
Lembro-me, como se fosse ontem, do primeiro dia que iniciei minha carreira na Educação Infantil enquanto auxiliar de creche, sem sequer estar graduado em Pedagogia. Estava responsável por uma turma de crianças de dois anos de idade. Fui recebido pela diretora da creche, a qual me apresentou a escola e me pediu para que, ao perceber que uma criança precisasse trocar sua fralda, pedisse para chamar uma das mulheres que trabalhavam comigo.
Na época, apenas segui as orientações da diretora, porém hoje compartilho que é necessário superar esse tipo de prática na Educação Infantil. Por trás desta postura, poderíamos dizer que há um cuidado da diretora ao pensar no preconceito que viria das famílias e, para evitar conflitos, me eximiu de uma tarefa que não era apenas das minhas colegas mulheres. Porém gostaria de olhar para esta situação sob uma ótica diferente. De certa forma, esse olhar coopera para perpetuar um olhar preconceituoso sobre a educação das crianças. Seria o homem um potencial abusador ou incapaz de exercer esse tipo de atividade?
Garantindo os direitos de aprendizagem da BNCC na pandemia
Para quem é útil: Professores e gestores de Educação Infantil
Qual o objetivo: Reforçar a importância dos seis direitos de aprendizagem previstos na BNCC de Educação Infantil e mostrar estratégias para assegurar esses direitos no isolamento social e em um futuro retorno
Homens que trabalham na Educação Infantil precisam lidar com esse tipo de preconceito quase sempre. No meu caso, ao longo de todos os anos como docente, tenho que lidar com esse tipo de discriminação. Sempre há aqueles olhares estranhos, conversas escondidas entre as famílias duvidando da minha capacidade como professor. Só fico sabendo disso ao término do ano letivo, quando as famílias relatam que essa desconfiança foi deixando de existir aos poucos.
Ter homens trabalhando com as crianças traz muitos ganhos educacionais para Educação Infantil, incluindo o próprio combate ao machismo. Historicamente, os trabalhos ligados aos cuidados foram delegados à mulher e, com o passar do tempo, foi se intensificando a ideia de que o homem não precisa ser responsável pelos cuidados com as crianças. Ainda hoje é bastante comum encontrar famílias em que as próprias mães defendem a ideia de que não cabe aos pais dos pequenos atividades de cuidado, como alimentação ou troca de fraldas. Ter um homem atuando como professor dessas crianças estremece essas crenças. Acredite, eu vivencio isso quase todos os anos!
Minhas experiências como professor homem
Já tive algumas discussões bastante interessantes entre as crianças sobre isso, algumas bastante inusitadas! Certa vez, as meninas da sala brincavam com bonecas e me aproximei para brincar com elas. Logo os meninos ficaram admirados com aquilo e dizendo aquela famosa frase: “isso é brincadeira de menina”. Conversando com as crianças, os meninos começaram a brincar junto das meninas.
Porém, a história não para por aí! Alguns pais (homens) vieram me procurar preocupados porque os meninos queriam brincar de boneca em casa. Ali surgiu um trabalhado bastante difícil, porém necessário, de combate a visão de que os meninos poderiam “virar meninas” ao brincar com boneca.
Outra história muito interessante tem a ver com um menino que na hora do lanche não tomava iogurte de morango. Ao perguntar o motivo, ele disse que preferiria não tomar por ser da cor rosa e isso significava que se travava de uma “bebida de menina”, conforme o avô dele havia lhe ensinado. Percebam o quão importante é quebrarmos esse tipo de paradigma absurdo e que priva a criança de experiências por conta de preconceitos que se originam fora da escola? E quando isso é combatido desconstruímos também preconceitos existentes dentro das casas das crianças.
Campos de experiência da BNCC: conheça melhor cada um deles
Para quem é útil: Professores e gestores escolares da Educação Infantil
Qual o objetivo: Estudar os pontos essenciais sobre a proposta da Base Nacional Comum Curricular para a etapa e conhecer práticas inspiradoras relacionadas a cada campo.
Enquanto homem, que dá banho, toca fraldas, brinca de boneca, expressa sentimentos, ouve as crianças e tantas outras coisas, estamos ensinando pelo exemplo que não existe “coisa” de menino ou de menina, mas que cabe aos homens e mulheres os mesmos papeis e responsabilidades.
Recorro aqui à “leitura de mundo” que as crianças fazem ao ver um homem partilhando destes momentos. Trata-se de um mundo em que pouco importa o gênero da pessoa quando se trata de cuidar de crianças, vestir uma roupa rosa ou azul, expressar sentimentos, cozinhar ou tomar um mero iogurte de morango.
Voltando ao caso que abri essa discussão, a escola precisa tomar a responsabilidade de combater qualquer tipo de preconceito ou discriminação. Além dos momentos reservados para essas conversas, a escola precisa viver estes valores em seu dia a dia e ter mais homens trabalhando diretamente com as crianças da Educação Infantil. Isso sem dúvida alguma ajudaria demais nessa missão.
Porém, nada disso será possível se os próprios profissionais da escola não perceberem a importância destas discussões. Recentemente, fiz a experiência de perguntar em um grupo do Facebook o que as professoras achavam da ideia de ter mais homens trabalhando com as crianças. Para minha surpresa surgiram falas como:
- "Até quatro anos deve ser apenas mulher, porque homem não pode levar ao banheiro"
- "Não é preconceito, é medo mesmo. Não deixaria minha filha na mão de um professor"
- "Geralmente homem não tem paciência com crianças"
Vale destacar que a maioria das professoras foi a favor e muito receptivas as ideias que defendo, porém entristece ver educadoras defendendo esse tipo de postura. O próprio grupo de trabalhadores das escolas precisa defender essa bandeira e banir o preconceito das suas falas, hábitos e costumes. Nesse ponto é preciso enxergar o papel da Educação numa ótica diferente e pensar na responsabilidade que carregamos conosco em nossos fazeres pedagógicos.
É preciso pensar na Educação como um ato político, longe de uma visão presente no senso comum em que se liga a ideia de “ser político” a “ser adepto a um partido político”, mas em uma dimensão em que as escolhas que fazemos reforça ou combate aos preconceitos. Nos calar perante uma situação de preconceito pode parecer uma postura neutra, porém deixar de agir é tão grave quanto reforçar tal atitude, afinal estamos negando a possibilidade de combate ao preconceito.
Podemos ver que se trata de uma discussão que pode durar muito tempo e não se esgota por aqui. Deixo apenas essa mensagem: cabe a todos nós incentivar a discussão DENTRO das escolas, o que vai ajudar não somente os homens, mas as mulheres no combate ao machismo que existe na nossa sociedade.
Um abraço carinhoso e até breve,
Evandro
Evandro Tortora é professor de Educação Infantil há 7 anos na Prefeitura Municipal de Campinas, licenciado em Pedagogia e Matemática e doutor em Educação para Ciência pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Bauru. Além da docência na Educação Infantil, tem experiência com pesquisas na área da Educação Infantil e Educação Matemática, bem como desenvolve ações de formação continuada para professoras e professores da Educação Infantil e do Ensino Fundamental.