Livro reúne histórias de crianças presas, torturadas ou exiladas durante a ditadura no Brasil



Organizado pela Comissão da Verdade de São Paulo, volume traz depoimentos de 40 pessoas que hoje têm entre 40 e 60 anos

SÃO PAULO - Os cabelos acastanhados desciam pelas costas estreitas até a cintura. Eram a expressão de vaidade da menina Zuleide Aparecida do Nascimento, de quatro anos. E uma das poucas coisas — além de uma boneca de plástico — que Zuleide supunha lhe pertencer quando foi presa por agentes da ditadura militar, em 1970. Talvez por isso a lembrança do corte de cabelo forçado que sofreu no Juizado de Menores seja uma das mais marcantes memórias de Zuleide.

— Aquilo foi uma violência muito forte para mim — afirma ela, aos 49 anos, emocionada.
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'O que é isso, companheiro?' (1997)

Baseado no livro de Fernando Gabeira, o filme narra o sequestro do embaixador americano, Charles Burke Elbrick, por integrantes das guerrilhas MR-8 e Ação Libertadora Nacional, em setembro de 1969. Com direção de Bruno Barreto, o longa concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 1998. Disponível no YouTube.

'Cabra marcado pra morrer' (1984)

O documentário de Eduardo Coutinho que narra a vida de João Pedro Teixeira, um líder camponês da Paraíba assassinado em 1962, teve as filmagens interrompidas em razão do golpe de 1964. Dezessete anos depois, o diretor retomou o filme e entrevistou novamente camponeses que trabalharam nas primeiras gravações e conviveram com Teixeira.

'O ano em que meus pais saíram de férias' (2006)

Escolhido para representar o Brasil no Oscar de melhor filme estrangeiro de 2008, o longa de Cao Hamburguer narra a história de Mauro, um garoto de doze anos que vê os pais partirem de forma inesperada (ambos eram militantes de esquerda e fugiram do regime militar). Está disponível no Telecineplay e Youtube.

'Em busca de Iara' (2013)

O filme conta a história da psicóloga e guerrilheira brasileira Iara Iavelberg, integrante da luta armada contra a ditadura militar e companheira de Carlos Lamarca. O documentário busca reconstruir sua vida e desmontar a versão oficial de sua morte, dada como suicídio. Disponível no Google Play.

'Batismo de sangue' (2007)

O filme baseado no livro homônimo de Frei Betto conta a história do convento dos frades dominicanos de São Paulo que, durante a década de 60, apoiou logistica e politicamente a Ação Libertadora Nacional, grupo comandado por Carlos Marighella.

'Zuzu Angel' (2006)

No longa, Patrícia Pillar vive a estilista brasileira Zuzu Angel, que teve seu filho, o militante político Stuart Angel Jones, torturado e morto pela ditadura. Sua busca por explicações somente terminou com sua própria morte, em 1976, em um acidente de carro envolvido em circunstâncias suspeitas. Disponível no Youtube.

'O dia que durou 21 anos' (2012)

O documentário aborda a participação do governo dos Estados Unidos no golpe de estado que depôs o presidente João Goulart, em 1964, e detalha sua participação no regime militar brasileiro.

'Marighella: retrato falado do guerrilheiro' (2001)
Foto: Reprodução

O documentário de Silvio Tendler retrata a vida de Carlos Marighella, cofundador da Ação Libertadora Nacional e um dos líderes da luta armada contra a ditadura militar brasileira.

'Hoje' (2011)

Estrelado por Denise Fraga, o longa conta a história de Vera, uma ex-militante política que recebe indenização do governo brasileiro pelo desaparecimento do marido durante a repressão do regime militar.

'Pra frente, Brasil' (1982)

Um dos primeiros filmes a retratar os horrores do tempo do regime militar, o filme dirigido por Roberto Farias mostra a euforia do Brasil em meio a copa de 1970, enquanto prisioneiros políticos eram torturados nos porões da ditadura.

'Que bom te ver viva' (1989)

A diretora Lúcia Murat, que sofreu na pele a repressão da ditadura militar, retrata histórias de mulheres toturadas e perseguidas durante o período.

'Pastor Cláudio' (2018)

O documentário traz depoimentos perturbadores sobre o delegado Cláudio Guerra, que afirma ter cometido nove assassinatos a pedido dos militares enquanto atuou pelo SNI (Serviço Nacional de Informações) e pelo Dops do Espírito Santo. Está disponível no YouTube e Google Play.

'Quase dois irmãos' (2015)

O senador Miguel e o traficante de drogas Jorge são amigos de infância e voltam a se encontrar nos anos 50 para negociar um projeto social numa favela. Duas décadas depois, eles se reencontram na prisão da Ilha Grande, nos anos 1970, quando presos políticos e presos comuns dividiam o mesmo espaço.

Paulo Betti interpreta o guerrilheiro Carlos Lamarca no longa baseado na biografia do militar e guerrilheiro. Capitão do Exército Brasileiro, ele desertou em 1969 e tornou-se um dos comandantes da Vanguarda Popular Revolucionária.

Zuleide e os irmãos de 2, 6 e 9 anos foram “capturados” no Vale do Ribeira, onde sua família se engajara na luta armada contra o regime. Ali, Carlos Lamarca comandava quadros da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Quando o grupo foi preso, as crianças também o foram.

Acabaram fotografadas (Zuleide, na imagem acima, à esquerda, já com o cabelo cortado), fichadas e tachadas como “miniterroristas” no temido Dops (Departamento de Ordem Política e Social). E foram banidas do Brasil. Ao lado de 40 presos políticos, embarcaram em um avião em direção à Argélia, e depois a Cuba, em uma negociação da esquerda com o governo militar que envolveu o sequestro do então embaixador alemão Ehrenfried von Holleben. O retorno de Zuleide ao Brasil só seria possível 16 anos mais tarde.

— Sou uma pessoa sem identidade. Fui alfabetizada em espanhol. Meus documentos foram cassados, nem sei que dia nasci. Me sinto mais cubana do que brasileira — diz.
"Infância roubada"

A história de Zuleide e de outras 39 pessoas que hoje têm entre 40 e 60 anos e foram crianças durante o regime militar estão contadas no livro “Infância roubada”, recém-lançado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva. O material é uma tentativa de rememorar, a partir dos relatos das vítimas, como o Estado militar tratou os filhos de seus inimigos. São narrativas inéditas de um dos trechos menos conhecidos da história nacional. Em pouco mais de 300 páginas, ilustradas com fotografias e documentos históricos, há depoimentos e contextualizações dos casos.

“Infância roubada” tem valor historiográfico por sugerir um certo padrão de tratamento dispensado pelos militares às crianças. Além de serem banidas, ficaram presas com os pais, participaram de sessões de tortura das mães, como espectadores ou como alvos das sevícias. E tiveram a própria existência ameaçada.

É o que relata Paulo Fonteles Filho, nascido em 1972, em um hospital militar. Seus pais foram presos por atividades comunistas. Fonteles conta que o pai assistiu a torturas da mãe, Hecilda, grávida de cinco meses. Antes do nascimento da criança, os agentes teriam dito a ela que “filho dessa raça não deve nascer”.

Depois do parto, os militares teriam demorado a entregar o bebê para a família de Hecilda porque não encontravam algemas que coubessem nos pulsos do recém-nascido. “Eles deviam me achar bastante perigoso!”, ironizou Fonteles em seu depoimento.

Zuleide partilha com Fonteles a mesma impressão:

— Tratavam-nos como se o comunismo fosse uma doença hereditária, sem cura. Como se fosse uma praga que pudesse se espalhar pela sociedade. Éramos um risco.
Bebês entregues a familias da elite militar

Apesar das semelhanças entre os regimes militares brasileiro e argentino, as narrativas sugerem uma diferença fundamental entre eles no tratamento dispensado às crianças. Se, na Argentina, os militares entendiam os filhos de inimigos como uma espécie de riqueza nacional, uma matéria bruta valiosa a ser moldada para a construção da sociedade que desejavam, no Brasil, o Estado, de inspiração fortemente positivista, foi para o lado oposto.

As argentinas presas grávidas eram tratadas com cuidado até o nascimento da criança. Casos de aborto eram raros e acidentais. Depois de nascidos, os bebês eram entregues a famílias da elite militar ou a seus apoiadores. O resultado foi mais de 500 crianças sequestradas e adotadas ilegalmente.

Já as forças repressivas brasileiras parecem ter revivido uma inspiração lombrosiana. O cientista italiano Cesare Lombroso fez sucesso entre a polícia nacional nos séculos XIX e XX ao defender que características físicas hereditárias — tais como o formato da orelha — eram capazes de predizer se um sujeito era louco ou bandido.

Ao tratar o comunismo quase como doença congênita, os militares parecem ter flertado com a estapafúrdia teoria. Esta hipótese, discutida por especialistas, ainda demanda estudos mais profundos para ser comprovada ou descartada. A tarefa deve ser facilitada quando forem publicados os relatórios das comissões da verdade em curso.
Eliana Paiva (em pé), com os pais Eunice e Rubens, a avó Acary e os irmãos Vera, Ana Lúcia, Maria Beatriz e Marcelo Foto: Divulgação / Arquivo de Família

O segundo trunfo de “Infância roubada” é dar voz a pessoas cuja dor nunca havia sido abordada. Muitos dos que se dispuseram a falar jamais tinham revelado completamente seu passado. É o caso de Eliana Paiva, cujo pai, o ex-deputado Rubens Paiva, foi morto em tortura pela ditadura. Eliana passou 24 horas presa. Durante metade do tempo, teve que usar “um capuz fedorento” que a sufocava. Aos 15 anos, foi chamada de comunista, levou cascudos na cabeça, apertões nos seios.

— Conforme o tempo passava, os agentes diminuíram a agressividade no interrogatório. Intuí que meu pai já estava morto — conta.

Sua prisão, o desaparecimento do pai e o sofrimento contínuo da mãe marcaram sua vida:

— Nunca tinha conseguido contar tudo sobre a prisão. Nem para marido, nem para terapeuta. Mas, aos 59 anos, quero resolver algumas coisas. Falar pode ajudar.

G1.

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