Na coluna de hoje trataremos de um eixo importante do Documento de 59 Recomendações produzido pelo Grupo de Alto Nível da ONU para dar conta do fenômeno que os especialistas em todo o mundo estão chamando de “apagão docente”. E como estamos aqui nos propondo a fazer uma leitura minuciosa desse documento, passando por todos os seus eixos e Recomendações de forma linear, do primeiro ao último, chegou a vez de falarmos da proposição da ONU que trata, naquele Documento, da formação permanente como prática indutora de inovação no ensino.
E muito pertinente esse tema ter caído justamente nessa semana, poucos dias depois de o Presidente Lula ter lançado o programa Mais Professores, que tem como objetivo induzir o ingresso na carreira docente, superando a falta de profissionais do magistério nas áreas de conhecimento com carência docente. O governo federal estima que esse programa deve beneficiar 2,3 milhões de professores e professoras em todo o Brasil, estimulando por meio de bolsas a matrícula em cursos presenciais de licenciatura.
Já nos posicionamos publicamente, quando do lançamento do programa, que o diagnóstico feito pelo Presidente Lula é absolutamente correto, quando indica todas as dificuldades de se ser e exercer a profissão de docente no Brasil, desde a violência no espaço escolar, passando pelas dificuldades de acesso às escolas, até no processo de formação. Mas o programa em si é insuficiente para dar conta de todas essas mesmas dificuldades elencadas pelo nosso maestro maior do Brasil. Mudanças estruturais que seriam necessárias para superar esse conjunto de problemas levantados não são priorizadas no programa Mais Professores.
E o que o Documento da ONU fala a esse respeito, nessa parte que aqui vamos abordar sobre a formação permanente e continuada de nossa profissão? O Eixo 5 traz 8 Recomendações que, indicadas aos países-membros das Nações Unidas, trata da dimensão da formação profissional como estratégia de inovação nas nossas práticas de ensino. A primeira delas se refere à formação inicial e de qualidade a todos e todas as docentes. Reparem que o texto fala explicitamente em formação de qualidade, algo fundamental e, especialmente no Brasil, prioritário de os governos assumirem como agenda central. O cenário atual brasileiro de termos muitas licenciaturas estruturadas em módulos de Educação à Distância (EaD) vai na contramão do indicado pelo Documento da ONU.
A segunda Recomendação se refere à necessidade de os/as professores/as de todos os níveis terem pelo menos um diploma de bacharel e/ou licenciatura e, idealmente, um curso de mestrado ou diploma equivalente. As instituições de ensino superior devem ser coordenadas, regulamentadas e monitoradas para garantir a coerência, a comparabilidade e a qualidade da educação destinada a para a formação de professores e professoras no Brasil. Ainda indica que as instituições privadas de educação que atuam na formação de professores/as devem ser devidamente regulamentadas para garantir um padrão mínimo de qualidade.
A terceira faz menção à formação inicial do corpo docente, que deve integrar teoria e prática para promover e fomentar habilidades de ensino positivas para a sala de aula, a fim de permitir que os/as professores/as desempenhem bem as suas funções. A formação inicial e desenvolvimento profissional contínuo dos/as professores/as, e aqui aparece a quarta Recomendação desse Eixo do Documento da ONU, deve ser transformada para preparar líderes em um novo ambiente de aprendizagem, com novos recursos tecnológicos e pedagógicos. Os profissionais do magistério devem ser não apenas provedores de informação, mas também guias e líderes ativos e inovadores no processo de aprendizagem e desenvolvimento social dos seus estudantes, a fim de “apoiar o desenvolvimento das suas capacidades de pensamento, da sua capacidade para resolução de problemas e suas habilidades de aprender de uma forma independentes e cooperando entre si”.
Outra Recomendação diz respeito à formação docente estar apta para prestar uma educação de qualidade centrada no estudante, que seja abrangente, transformadora, inclusiva, eficaz e relevante, também através da educação baseada na língua materna, quando aplicável, como no Brasil, onde temos muitas comunidades indígenas. Os/as docentes devem guardar um alinhamento mínimo na promoção do desenvolvimento sustentável. Isso, certamente, ajudará a professores e professoras a exercerem liderança e a também serem aprendizes ao longo da vida, como nos ensinou Paulo Freire. A capacidade de liderança educacional deve ser reforçada através do desenvolvimento da qualidade profissional contínua, e aqui aparece outra importante Recomendação, muito rara de se ver nas redes de educação básica brasileira: incluir programas de intercâmbio e iniciativas de pesquisa, que devem ser parte integrante da trajetória profissional de ensino de todo educador e educadora.
Por fim, mas não menos importante, e sintomático de como em nosso país ainda estamos longe de promovermos mudanças estruturantes nos nossos sistemas de ensino, a ONU recomenda também que os/as novos/as professores/as devem receber orientação próxima logo em seu começo de carreira, um acompanhamento que seja apropriado sob a supervisão de professores/as experientes e devidamente qualificados/as, bem como uma carga horária reduzida e recursos adequados durante seus primeiros anos na carreira. E no chão da escola, e aqui aparece a última Recomendação desse Eixo, as redes de ensino devem oferecer aos/às professores/as equipes interdisciplinares para que o conteúdo principal das disciplinas tenha conexões mais amplas. E isso só é possível com o exercício do pensamento crítico, como sempre nos inspirou o pensamento de Freire.
(*) Por Heleno Araújo, professor, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e atual coordenador do Fórum Nacional da Educação (FNE).